Nostalgia e medos

domingo, 29 de novembro de 2009

Remexer coisas do passado às vezes é bom. Hoje, por exemplo, sem querer, mexi num dos e-mails mais antigos que eu tenho no eu Gmail. Uma grande amiga minha - com a qual eu nem tenho tanta afinidade/intimidade assim, mas gosto de chamá-la dessa forma, pela grande importância que teve em um momento extremamente difícil de minha vida - certa vez me mandou o poema que se segue, da Clarice Lispector:


A gente se acostuma

Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos
e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista,
logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora,
logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas,
logo se acostuma a acender cedo a luz.
E a medida que se acostuma,
esquece o sol,
esquece o ar,
esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado
porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone:
"Hoje não posso ir".
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo,
o que deseja e o de que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro,
para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma à poluição.
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias de água potável.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber,
vai afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali,
uma revolta acolá.
Se a praia está contaminada,
a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o cinema está cheio,
a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se o trabalho está duro,
a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer,
a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito,
porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza,
para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas,
sangramentos,
para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta,
e que se gasta de tanto se acostumar,
e se perde de si mesma...


Eu quero fazer aqui uma ponte com a letra da música Little by Little, da banda britânica Oasis. O refrão dela diz o seguinte:

Cos little by little
We gave everything
You ever dreamed of
Little by little
The wheels of your life
Have slowly fallen off
Little by little
You have to give it all in all your life
And all the time I just ask myself why
You're really here

(Tradução:
Pouco a pouco
Nós desistimos de tudo
O que sempre sonhamos
Pouco a pouco
As rodas da sua vida
Vão caindo
Pouco a pouco
Você tem que desistir de tudo em toda a sua vida
E o tempo todo eu me pergunto porquê
Você realmente está aqui)


Chamem-me de melodramática ou que quer que seja, mas a perspectiva proposta por essas duas produções me parece extremamente triste. Quando crianças, somos bombardeados por contos de fadas e historinhas bonitinhas que nos insistem para não desistirmos dos nossos sonhos. Quando crescemos, recebemos um choque de realidade que nos diz para esquecer toda essa "bobagem". Em meio a tanta filosofia contraditória, em qual acreditar? Ser libriana num mundo tão cheio de opções não é nada fácil - mas duvido que essa crise existencial seja um problema unicamente dos naturalmente indecisos librianos. É difícil mesmo saber o que fazer.

Continuo achando triste e terrível parar de correr atrás de coisas que eu quero e em que acredito só porque parecem difíceis de alcançar. Por outro lado, analisando a vida, isso acaba me parecendo uma daquelas verdades incotestáveis que, por mais que tentamos evitar, elas vêm à tona para nos afrontar, para atestar a nossa incapacidade. A expectativa de vida hoje de um ser humano (no caso, brasileiro) gira em torno dos 80 anos. Até os 30 você está se matando de estudar e trabalhar para se firmar. Sobrariam em média 50 anos para aproveitar, mas depois disso, começam a aparecer as doenças. Se você vive em um grande centro urbano, ainda corre um alto risco de sofrer um acidente fatal ou ser assassinado e ter o fim da brincadeira antecipado. Nos desenhos animados sempre aparece algum personagem preocupado com o sentido da vida, e só agora eu (acho!) consigo entender o sentido desse questionamento - porque quando eu era criança, sinceramente, não fazia o menor sentido mesmo. Com uma existência tão frágil, realmente, o que dá pra gente fazer em tão pouco tempo?

Pensando num exemplo prático: por volta dos 11 ou 12 anos eu descobri o handebol. Até então eu jogava futebol com um monte de moleques do meu bairro (eu sempre fui uma menina-moleca). Não me lembro de ter conhecido algo tão bom em toda a minha vida. Eu amo jogar handebol. Tudo para mim era handebol: entrei em times das escolas por onde passei, fiz de tudo para manter os times vivos, fui atrás de nos metermos em campeonatos, batalhei camisetas para meu time, procurava jogar sempre. Até menti para professores que nos treinavam, escondendo péssimas notas na escola, tudo para não deixar de jogar. Desde que saí do Cotuca (Colégio Técnico de Campinas, onde fiz meu Ensino médio), em 2005, nunca mais joguei handebol. Por muito tempo tentei reunir algumas pessoas para jogar, mas estou cada dia mais próximo de desistir definitivamente. É bem possível que eu nunca mais jogue handebol na minha vida - e isso é extremamente cruel para mim. É como se eu tivesse uma parte de mim necrosada, pronta para a amputação. Deve ser assim que o João do Pulo se sentiu quando perdeu as pernas.

Quando se pergunta "Do quê você mais tem medo?", normalmente se ouve a resposta "morte". A maioria das pessoas têm medo de morrer. Eu acho que eu não tenho medo de morrer - não do fato em si, pelo menos. Acho que do que eu tenho mais medo mesmo é de morrer sem ter feito tudo o que eu quero fazer, tudo de que eu gosto, tudo o que eu tenho sonhado e planejado para mim. Eu não gosto da idéia de me acostumar com o que está ruim e me adaptar a isso; acredito que o certo (se é que essa seria uma palavra adequada) é arrumar o que está errado, ou pelo menos tentar. Tanto faz - eu sempre fui a "do contra" mesmo. E apesar de eu não ser muito fã da Clarice Lispector, concordo com ela: "Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia".

E eu choro pelo leite derramado, sim - afinal de contas, no mínimo, foi um desperdício.

3 comentários:

Digo 30 de novembro de 2009 às 22:56  

Sobre essa de acostumar, faz parte do cotidiano, que nada mais é que uma palavra que nos significa mesmisse. Sobre idade, quanto mais velhos ficamos, mais preocupados com o tempo restante de vida ficamos. Até que se chegarmos aos 90, vamos querer que tudo acabe logo e bem...

Anônimo 8 de dezembro de 2009 às 22:28  

Primeiro, adorei a frase final! (rs) Olha, eu tb morro de medo de ter meu fim antecipado às coisas que tanto almejo. É mto foda vc ser esforçado, tentar vencer na vida e ver tanta gente desperdiçando a vida boa que tem...Eu ando pensando muito sobre essas coisas esses dias e me desaponto drasticamente. Às vezes eu acho que so preciso de um pouco mais de ousadia e liberdade....

catacrese 8 de dezembro de 2009 às 22:59  

Do que eu tenho mais medo? De não viver, não de morrer.
Acho que qualquer ser pensante que tenha alguns neurônios na cabeça já se encontrou em profundos momentos existencialistas, e isso provavelmente é algo inevitável de acontecer ocasionalmente (ou em alguns casos, frequentemente).
O ponto principal é o que tirar disso: frustrações incessantes ou mudanças?
Devo dizer que algumas frustrações não são tão opcionais..talvez você apenas escolha a respeito do que vai se frustrar. Mas pelo outro lado, a mudança sim é opcional... e já que as frustrações são inevitáveis... por que não mudar?

Sobre Pensamentos Avulsos...

Pensamentos Avulsos são divagações e outras bobagens que saem da cabeça insana dessa que vos escreve. Espaço livre para meu bel prazer de escrever e expor de alguma forma minhas idéias. Como blogueira, eu gosto de comentários; como escritora, eu preciso de críticas. Ambos me servem como uma espécie de termômetro de qualidade para a minha produção. Portanto, por gentileza, colabore. :-)

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